No prelo há mais de 50 anos...

O amor, poeta, é como cana azeda, A toda boca que não prova engana. (Augusto dos Anjos)

Textos

A psique de um enfartado.
Do alto dos seus setenta e poucos anos, Humberto passa mais da metade do dia numa cadeira de balanço, a balouçar as recordações da mocidade.

Homem culto e criativo, de porte atlético, tem a calvície disfarçada pelos  longos cabelos que lhe restam e que lhe emprestam uma feição jovial.

Fora oficial da marinha, o que lhe dera boa parte da tez morena e metade das rugas que, com orgulho, ora ostenta.

Aposentara-se, por força de lei, absolutamente contra a sua vontade e disposição, após uma vida dividida entre terra e mar, sol e vento, ondas e calmaria.

Num desses dias de primavera, quando desabrochavam as flores amarelas do ipê defronte ao avarandado de sua casa de campo, Humberto começou a pôr em prática um antigo sonho que ficara submerso nas águas dos tantos mares navegados: Escrever um livro onde pudesse registrar um pedacinho, que fosse, da sua vida.

Assunto não lhe faltava, mas o amor, a paixão e as aventuras no mar eram os seus temas preferidos.

Mão e mente em comunhão iniciaram uma viagem inesquecível do lápis pelo papel...


— "Primeiro de abril de 1964: Com pouco mais de 40 anos, Humberto, capitão do Redentor, navegava nas águas calmas da costa brasileira, sob o luar esplendoroso do Atlântico, cumprindo sua gloriosa missão de proteger as águas nacionais de eventuais invasões estrangeiras.

    Era tempo de paz!

    Não fosse por uma ou outra onda revoltosa que morria no casco do Redentor, podia-se escutar o universo em expansão.

Em vigília, já pelas altas madrugadas, o capitão passeava absorto pelo convés, na solidão dos seus pensamentos, quando notou uma réstia de luz a bombordo.

    Dono de uma curiosidade aguçada, aproximou-se do local para observar mais de perto o que acontecia.

    Ouviu, como num suspiro, uma voz sensual chamá-lo pelo nome com que fora carinhosamente agraciado pelos amigos, em homenagem à sua inabalável coragem e heroísmo dos tempos de guerra: Capitão de ferro.

    —Ferro!... Ferro!... Ferro!...
    Aproximou-se mais e pode ver por sob um facho de luz: de cabelos dourados caindo displicentemente pelos ombros; de olhos cor do mar a refletir estrelas; de seios rijos apontando para o céu, como duas aréolas a ofuscar a lua; de tez macia como um convite ao toque... a mais linda de todas as  musas que jamais houvera visto.

    Atendendo aos pulsos incontroláveis da testosterona, o capitão lançou-se, sôfrego, nos braços generosos da deusa nua.

    Realizava naquele momento o sonho mais idealizado de toda a sua vida: Fazer amor sob o testemunho da lua, do mar e das estrela; ser acariciado pelo vento da madrugada sem sequer uma bulha humana a perturbá-los, a não ser as dos seus corações de amantes no galope desesperado do prazer... oh!... oh!... oh!..."

Com a visão embaralhada Humberto observa, da cadeira de balanço, a flor que cai do Ipê e que parece dissolver-se no ar. O mundo aparenta girar sobre si. Uma torrente de suor cai-lhe ao rosto como se estivesse no meio de uma tempestade. Uma dor lancinante ataca-lhe o peito a sufocá-lo.

A folha de papel, marcada pelo suor da sua mão, desliza sobre a prancheta levando seu breve espasmo de talento para o chão.

Acorda, algumas horas mais tarde num leito de UTI, e, ainda sonolento, ouve, sem muita convicção de estar ouvindo, um jovem médico, em discussão com seu colegas de plantão, defender a tese de que a dor do infarto do miocárdio, a exemplo de outras dores agudas e graves, parece estimular por alguma via, possivelmente através de neurotransmissores , a ejaculação do paciente acometido.

Humberto esboça um sorriso meio maroto, meio científico e tenta, mentalmente, recuperar as primeiras linhas do seu livro.

Herculano Alencar
Enviado por Herculano Alencar em 12/09/2007
Alterado em 13/09/2007
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