No prelo há mais de 50 anos...

O amor, poeta, é como cana azeda, A toda boca que não prova engana. (Augusto dos Anjos)

Textos

Um brinde à poesia muda!
Pintando versos

Se Deus me desse a carne inda vazia,
a encheria a alma dum pintor!
Não sei se alma tem alguma cor,
mas minha alma alguma cor teria:

matiz de paz, amor e poesia
num arco-íris vivo, uma aquarela...
E assim, teria eu, alma tão bela,
que, de tão bela, nunca morreria.

Se acaso a morte fosse uma pintura,
ainda assim a morte deixaria
min'alma tatuada na textura

como Jesus na mente de Maria.
Como não fui pintor, à essa altura,
faço das letras minha alegoria.
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Aos girassóis de Van Gogh

Se cada girassol um sol esconde
e há um sol em cada primavera:
Um sol, bola de fogo, fulva esfera,
que vive a esconder-se não sei onde!

Se cada girassol um sol espera
e há um sol em cada horizonte:
Um sol que é, de luz, imensa fonte
que vive a iluminar tanta quimera!

Por que será que a arte não esconde
do girassol, o sol, que ora responde
o apelo tão sublime do pintor!?

É que os girassóis, numa pintura,
recriam cada sol da amargura,
que faz a um girassol perder cor.
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Metáforas de uma poesia muda

A noite espreguiçava o amanhã
brincando de esconder-se à luz do sol,
que, reticente, ao som de um rouxinol,
corava a face exposta das maçãs.

O dia, mal saído do lençol,
fingia não ter pressa nem ter hora.
E lânguido, ciente da demora,
flertava um displicente girassol.

O mundo desabava em poesia,
enquanto em mim (poeta) amanhecia
o último suspiro da aurora:

Soneto, em versos feitos à candeia,
que fez o sol fingir ser lua cheia
até ver a saudade ir-se embora.
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A gênese perfeita

Enquanto o mar brinca de roda na areia,
ela passeia sua sensualidade...
E segue alheia ao meu olhar, minha vontade
e à tempestade de desejos que a rodeia.

O sol prepara a tez morena para a ceia;
ela penteia os cabelos contra vento.
Anda na areia a balouçar seu argumento
deixando o vento morno lhe soprar a teia.

O meu olhar, que pelo seu olhar vagueia,
se desnorteia qual um barco à deriva;
E do seu ventre um flamar de água-viva
agita-me o sangue a transbordar nas veias.

Nesse momento o vento agita e serpenteia;
o mar recua as barbas brancas no horizonte;
uma gaivota leva o céu pra bem distante
e Deus recria o homem de um grão de areia.
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Pinturilando "A última ceia" de Leonardo da Vinci

Assenta-se ao centro, penitente,
a repartir o pão de cada dia
co'a mão de quem declama poesia,
que "em verdade" esconde a dor que sente.

O olhar de quem sentiu e ainda sente
a dor de uma crença alienante,
que sabe enxergar o olhar farsante
que dorme no olhar da sua gente.

A voz, “masterizada” na pintura,
ecoa uma visível amargura
que ronda sob o peito do artista

ao conceber, nas cerdas do pincel,
que o inferno hipotecou o céu
e fez “Da Vinci” ser um avalista.
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Naquele dia de verão em que choveram flores vermelhas

O sol, o mar, as dunas de areia...
O vento morno a sibilar cantigas
tange os cabelos de uma rapariga
e o desejo que por mim passeia.

Ao longe... o cantar de uma sereia
faz a segunda voz da poesia.
E, absorto, em plena luz do dia
construo o meu castelo de areia.

Era um verão com cor de primavera,
como posasse pra fotografia.
E lá estava, eu, em sintonia,
no meu castelo a esculpir quimera.

De repente o vento aquiesceu.
O sol escondeu-se atrás do mar.
Não mais ouvi a sereia cantar:
Quedamos, frente a frente, tu e eu.

Vi dos teus olhos lágrimas parelhas
qual gotas de orvalho em profusão.
E por milagre, naquele verão,
choveram dúzias de flores vermelhas.
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Pôr-do-sol

O mar oferece calmo ao sol ardente
o seu leito, inda frio, de amante,
numa explosão de cor, exuberante,
que é impossível apagar da mente.

O sol de, despudorado, rubro e quente,
desmorona atóis em fulvos sentimentos,
deita seu flâmeo furor por um momento
nas nuvens algodoadas do poente.

Dá-se, então, o beijo entre sol e mar
e anuncia a Deus que é hora de dormir,
pois até Ele também tem que sonhar;

o sonho humano de que faz surgir,
toda a beleza que se possa olhar,
no olhar do amor que se possa sentir.
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O acordar no Pantanal

O sol nadando nas águas
reflete o céu como espelho!
Inunda, de tons vermelhos,
o rio e as minhas mágoas.

Dos olhos, a correnteza
leva um sonho de criança,
uma lágrima que dança
a chorar tanta beleza...

Tanto amor, tanta saudade,
tanta paz e tibieza...
Chorar com intimidade,

chorar com delicadeza
de quem chora, na verdade,
com os olhos da natureza.
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Herculano Alencar
Enviado por Herculano Alencar em 10/10/2009
Alterado em 28/10/2016
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