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O amor, poeta, é como cana azeda, A toda boca que não prova engana. (Augusto dos Anjos)

Textos

Um brinde à poesia lírica e romântica
Herculano Alencar

Lembrança de ti

A minha boca, hoje tão deserta,
já foi quase um oásis pro teu cio.
Já claudicou teu corpo nu, vadio,
em cada curva e nova descoberta.

Já abrigou teus frêmitos, gemidos...
já te acalmou quando, em convulsão,
vertias teus suores de paixão,
enquanto eu cochichava ao teu ouvido:

Mentiras em sonetos e poemas;
murmúrios de amor em agonia;
suspiros sensuais em voz amena.

Hoje sedenta, triste e vazia,
preenche tua falta com fonemas
e a lembrança de ti com poesia.
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Soneto do amor que foi

Preciso te contar dessa saudade
que encardiu os nossos travesseiros!
Já nem me lembro mais quantos janeiros
teu cheiro condenou-me à eternidade.

A rosa, que murchou, sem piedade
ainda hoje grassa na lembrança
a dúvida, a cruel desconfiança,
que dorme entre a mentira e a verdade.

Foi tanto amor perdido, tanto e tanto...
que quase desmanchei-me, junto ao pranto,
nas águas outonais daquele dia.

Restou-me a ilusão da primavera,
que fez morrer, na dor da longa espera,
o resto de saudade que eu sentia.
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Trabalho de parto

Qual uma flor, fecunda de perfume,
no ventre da floresta ainda nua,
que invade impune o céu e vai à  lua
e volta à terra feito um vaga-lume...

Desce na alma o véu da poesia
pra colorir  a aura momento
e perfumar  o Eu do pensamento
que faz-se flor, usando igual magia.

Pois que da flor exala a emoção,
na emoção a verve refloresce,
e cresce, e  assim invade o coração...

A poesia então amadurece
qual a metamorfose da paixão
cujo casulo algum poeta tece.
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Ocaso do amor em si bemol

Foi-se a última nota musical
rangendo em dissonante sofrimento...
Um Si bemol, acordes de um lamento,
a sostenir um grande recital.

A partitura enverga-se ao final!
Resta a última clave, em solidão,
no lúgubre sepulcro da canção,
tal qual fora um doente terminal.

Foi-se a última dor de uma paixão:
um Si bemol em busca do destino,
deixando amargo rastro no refrão,

qual mugidos de dor do violino!
Restam alguns pedaços de ilusão
que o pranto do amor vai consumindo.
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Imagem real

O amor abraça o ódio comovido,
como num reencontro de amizade.
E beija-o com força e com vontade
e fala de paixão ao pé do ouvido.

Que o amor  ama o ódio, não duvido.
E ama pois que é do seu feitio
nadar sem que conheça a foz do rio,
até que chegue ao mar desconhecido.

O ódio beija o amor de qualquer jeito,
como quem beija um velho conhecido.
Pois é o próprio amor envelhecido,
que caducou, senil, dentro do peito.

O amor  imita o ódio nos defeitos,
talvez  por isso são tão parecidos.
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Soneto da vingança e do perdão

Vou ferir-te no imo, na essência!
Roubar-te as ilusões dos sentimentos.
Não ouvirei de ti os teus lamentos
ou os gritos febris por inocência.

Hás de levar-me feito penitência
pelos teus erros, pelo teu passado.
Hás de amar-me, o quanto tenho amado,
até o limiar da resistência.

Então vou rir, zombando do teu pranto,
e irei mais fundo... lá, no coração,
até despedaçá-lo de paixão.

Mas  se olhares com o teu encanto,
rogo por Deus que tenha compaixão
e me entrego inteiro em tua mão.
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Atire a primeira flor

Quem não viveu paixões desesperadas;
amou, quase morreu de tanto amar.
Quem não beijou, até perder o ar,
na boca, em outra boca, afogada.

Que não carpiu infindas madrugadas
as lágrimas traídas da razão.
Quem não sentiu no próprio coração
aquela sensação de tudo ou nada.

Quem não buscou refúgio na calçada
do muro que encastela a musa amada
e deu-se em corpo e alma ao violão.

Que atire neste amante indigente
a flor primeira, a rosa indiferente
aos beija-flores mortos de paixão.  
Herculano Alencar
Enviado por Herculano Alencar em 07/03/2012
Alterado em 10/03/2012
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