No prelo há mais de 50 anos...

O amor, poeta, é como cana azeda, A toda boca que não prova engana. (Augusto dos Anjos)

Textos

Tola herança 

Do lado do meu quintal,
Na casa do meu vizinho,
As aves faziam ninho
Na forquilha do varal.
Era o mesmo ritual,
Dia a dia, ano a ano:
Um displicente tucano,
Com seu bico arqueado,
Ficava ali assentado,
Quase que ao abandono.

Parecia um cão sem dono
A espreita da comida,
Que Sinhá Aparecida,
Uma rainha sem trono,
Devagarinho e com sono,
Claudicava no quintal,
Dando lição de moral
Pra quem estava por perto:
Grão de areia no deserto,
Gota d'água em temporal.

A molecada, afinal,
Fazia ouvido de mouco,
Enquanto esperava um pouco
Pra fazer seu carnaval:
A espingarda de sal,
Carregada até o cano,
Roubada do Carcamano,
Dono da mercearia.
Dá-se início à correria
Do jogo quotidiano.

Bola de meia-de-pano!
Campo de terra batida!
Nem Sinhá Aparecida,
Com seu saber Freudeano...
Sujeito grego ou troiano,
De Mossoró ou Natal,
Dava o apito final,
Pra terminar a peleja.
Nem o poder da igreja
Ou do código penal.

A torcida, na Geral,
Xingava a mãe do juiz:
—Vagabunda! Meretriz!...
Et cetera, coisa e tal...
E foi assim que o quintal
Virou sombra da lembrança:
Travessuras de criança,
Uma vã filosofia...
Que a saudade recria 
E nos deixa de herança.
Herculano Alencar
Enviado por Herculano Alencar em 12/10/2021
Alterado em 12/10/2021
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