![]() ECLÉTICOEU METAFÓRICO
1- Metáfora para o dia das Mães
Eu tinha cinco anos, talvez mais, Quando mamãe contou-me uma história, Que inda hoje trago na memória, Das lembranças guardadas dos meus pais.
Ela disse que Deus dava sinais, Que iria ocorrer algo de bom: Fez até o trovão baixar o som Durante os sermões dominicais.
Mamãe nunca mentiu. E, certamente, Jamais faria Deus ser conivente Com alguma mentira, outrossim.
Eis que algo de bom aconteceu: Minha mãe deu o leite, que foi meu, Pra um filho de Deus, além de mim.
2- Metáfora do amor perfeito
Plantei uma semente, com carinho, No ventre duma musa mui amada! Uma semente frágil, delicada… Que veio germinar devagarinho.
Nasceu uma florzinha encantada, Que logo atraiu uma abelha. Uma florzinha pálida, vermelha, De pétalas erguidas para o nada.
O tempo foi passando e a florzinha, Que já não mais parece ser a minha, Tornou-se uma flor amor-perfeito.
Hoje atrai abelhas em cardume, Abelhas que lhe roubam o perfume E constroem colmeias no meu peito.
3- Uma metáfora para ópio do povo
Pergunta para a cruz, ajoelhado, Porém a cruz, inerte, não responde. Alguém o observa, lá de longe, Numa velha cabana sem telhado.
A cruz, como as lembranças do passado, Não compreende a língua do presente. Por isso não responde, inda que tente Falar por quem já foi crucificado.
Até que alguém responde pela cruz: “Poeta, acenda a vela, apague a luz, Coloque um tapa-olho no vizinho,
O conduza à cabana sem telhado E o deixe, por lá, alienado… Pois não suportará ficar sozinho.”
4- Metáfora de Orfeu e Afrodite
Construímos um túnel, tu e eu, Que nos separa mais do que nos liga, E que, de cada lado, ele abriga Um pouco do amor que se perdeu.
Lembro de ti como uma coisa antiga: Um brinquedo que já não uso mais; Um beijo dado, muito tempo atrás, Quando beijar ainda dava briga.
Foi nesse enorme túnel em que eu E tu marchamos juntos, separados: O túnel que uniu nossos pecados, Mas que manteve o meu longe do teu.
Pois eu pequei na lira de Orfeu, E tu, nos teus cabelos cacheados.
5- Uma Metáfora para o Tempo
O tempo não tem asa, não tem pena, Mas voa com a luz pelo espaço. E faz a poesia, como faço, Trocar “menor” por “muito mais pequena”.
O tempo dá um tempo a cada passo, Na longa caminhada ao infinito. E, faça um tempo feio ou bonito, Dá tempo pro sucesso e pro fracasso.
E, se acaso o tempo fosse alado, Com duas asas, uma em cada lado, E coberto de pena — o que seria?
Seria tão somente uma quimera, Uma coisa que voa e não espera O poeta cuidar da sua cria.
6- Uma metáfora esquisita
Se não sei o que sei, o que eu sei? Nem Sócrates… nem eu responderia! Nem se o pai da Trigonometria, Hiparco de Niceia, fosse rei.
Nem mesmo o poeta, quando cria Um verso, uma estrofe, um poema, Consegue decifrar esse dilema, Em que pese o poder da poesia.
Se sei que tudo sei, eu não sei nada! E, mesmo que pareça uma piada, Não expressa o saber ou a tolice.
Pois, na filosofia, um poeta Procura, imagina e arquiteta Um lugar pra que o verso se espreguice.
7- Metáfora onírica
Por sob a sombra estreita do coqueiro, Enterrei o meu sonho-adolescente, Vendo o mar espumar em minha frente, Numa manhã de sol de fevereiro.
Eu sonhava plantar, no mundo inteiro, Uma muda de amor e poesia, E cuidar e regá-la, dia a dia… Como se o mundo fosse meu canteiro.
Hoje, adulto, o meu sonho continua… Onde antes foi sol, agora é lua, Numa noite estrelada de janeiro.
Procurei, noite adentro, a sombra estreita, Sob uma lua mais do que perfeita, Mas não havia sombra, nem coqueiro.
8- Metáforas orquestradas
Silêncio! A palavra está dormindo! Se o silêncio fala pros que ouvem, Ouçam, pois, “O Silêncio” de Beethoven, Que até mesmo um surdo acha lindo.
O violino, aos poucos, intervindo Nas teclas diligentes do piano, E a música a dizer pro ser humano: Bem-vindo ao paraíso! Sê bem-vindo!
O cello e a flauta, lado a lado. O velho clarinete, já cansado, Que espera pra beijar o violão…
Parece ouvir um sopro de desgosto, Enquanto o maestro enxuga o rosto, Que sua, mas não molha o coração.
9- As metáforas do caminho
Começa-se a andar quando engatinha: O andar claudicante e imaturo, Que leva, lentamente, ao futuro Um plebeu às coroas da rainha.
Queira Deus que esta sina seja minha E de todos os que vão seguir em frente, Por desejo de ir ou, simplesmente, Pra tentar entender por que caminha.
O que vale, de fato, nessa vida É andar, desde o ponto de partida, E jamais esquecer da caminhada.
É plantar tantas flores no caminho, Que nenhum beija-flor fique sem ninho, E não sobre uma flor sem ser beijada.
10- Uma tola metáfora de amor
Meu coração ainda bate forte Quando seus olhos cruzam meu olhar, Como se o céu olhasse para o mar, E a vida namorasse com a morte.
Como se os seus olhos fossem o par De asas que divide, com os meus, As cores mais singelas com que Deus Pintou o pôr do sol e o luar…
Seu coração, não sei se ainda bate, Ou se ejeta o sangue escarlate Em que navega a nau do meu amor.
Mas, quando o seu olhar cruza o meu, Meu coração esquece o que sofreu E bate asas qual um beija-flor.
EU LÍRICO
1- Que atire a primeira flor
Quem não viveu paixão desesperada, amou, quase morreu de tanto amar? Quem não beijou, até perder o ar, a boca, em outra boca, afogada?
Quem não carpiu, infinda madrugada, as lágrimas traídas da razão? Quem não sentiu, no próprio coração, aquela sensação de tudo ou nada?
Quem não buscou refúgio na calçada do muro que encastela a musa amada e deu-se, em corpo e alma, ao violão?
Que atire, neste amante indigente, a flor primeira — a rosa indiferente aos beija-flores mortos de paixão.
2- Um pouco de amor
Um pouco de amor, seja um tiquinho, Um grãozinho de sal nos oceanos, Um segundo de paz em dez mil anos, Uma pedra miúda no caminho.
Uma brisa a soprar num torvelinho, Um pinguinho de chuva no deserto, Uma réstia de luz a céu aberto, Uma flor que murchou num colarinho.
Um pouco de amor, um tanto assim… Pra que eu caiba em você, você em mim… Como a alma e o corpo, em comunhão…
O amor, meu amor, mesmo pouquinho, Para além de fazer seu próprio ninho, Deixa sempre um cantinho pro perdão.
3- O nome da Flor
Havia uma flor no meio do caminho, Entre o portão de casa e a esquina. Era uma flor do mato, pequenina, Sem perfume, sem cor e sem espinho.
Cresceu sem ser regada, sem carinho... Pois nunca conheceu um beija-flor. E mesmo sem perfume e sem cor, Enciumava a flor do meu vizinho.
Que mistério guardava essa florzinha, Capaz de enciumar a flor vizinha: Um bonito e formoso amor-perfeito?
Encontrei a resposta um certo dia: A florzinha se chama Poesia E exprime a beleza do seu jeito.
4- Mulher-poesia
Mulher — essa divina ossatura, Tirada da costela de Adão, A força de Dalila em Sansão, O trigo que ao joio não mistura…
O golpe magistral da Criação, Quando Deus concebeu tal escultura E, nas formas abaixo da cintura, Entalhou os pecados de Adão.
Mulher, que dá luz e calor à poesia, Que é cheia de paz, mesmo vazia, E se entrega ao amor, nua e completa…
Não é só de Adão uma costela, Mas o lado de Deus que se revela Nas transes de ventura do poeta.
5- Metáfora de Orfeu e Afrodite
Construímos um túnel, tu e eu, Que nos separa mais do que nos liga, E que, de cada lado, ele abriga Um pouco do amor que se perdeu.
Lembro de ti como uma coisa antiga: Um brinquedo que já não uso mais; Um beijo dado, muito tempo atrás, Quando beijar ainda dava briga.
Foi nesse enorme túnel em que eu E tu marchamos juntos, separados — O túnel que uniu nossos pecados, Mas que manteve o meu longe do teu.
Pois eu pequei na lira de Orfeu, E tu… nos teus cabelos cacheados.
6- Lampejo da lembrança
Agora eu sou um pássaro vadio, Fazendo acrobacias pelo ar; Voando, pelo gosto de voar, E de levar a vida por um fio.
Comigo, a poesia entra no cio E se dá ao poeta, sem pudor; E ensina ao amante como pôr A ausência do nada no vazio.
Agora eu sou um velho passarinho Que, de tanto voar, voa sozinho, E hoje já não faz acrobacias.
Ainda assim, eu voo doutro jeito, Na busca de encontrar um par perfeito, Como um verso ao sabor das poesias.
7- O ciclo do amor
O amor, quando chega de repente, Traz a semente fértil da paixão, Como se fosse flor, inda botão, No imenso jardim que há na gente.
E cresce — e ocupa o coração, E invade a alma e a mente… E exala o perfume, e sente Uma flor já adulta, não botão.
E atrai um montão de beija-flores Que exibem, pra ela, suas cores No balé marcial da sedução.
Quando enfim ela escolhe um pretendente, O imenso jardim, que há na gente, Volta a ter uma flor inda botão.
8- Cai a Noite
Versão revisada
O sol, discretamente, vai embora, A fazer do adeus um “até logo”. Eu olho o céu sombrio, penso e rogo Que ele volte depressa, sem demora…
A lua, com seus traços de senhora, Convida os amantes para amar. E eu, que estou só, procuro um par, Enquanto o coração tristonho chora.
A noite — guardiã dos namorados — Acolhe docemente os meus pecados E os esconde dos deuses dessa hora.
E eu, agora em tua companhia, Durmo, dentro de ti, até que o dia Traga de volta o sol que foi embora.
9- Onírico
Eu precisava ver, naquele dia, O que tinha pra lá do fim do mundo. Então, caí num sono tão profundo, Que até mesmo Morfeu não dormiria.
Aí me veio em sonho a Poesia Me mostrar que, pra lá do fim do mundo, Havia um poço grande e tão profundo, Que só mesmo um sonho mostraria.
Desse dia pra cá, quando preciso Enxergar para lá do fim do mundo, Me entrego ao sono e, num segundo, Faço o poço virar um paraíso.
Quando a gente adormece, o juízo Vai além, muito além, do fim do mundo.
10- A Voz do Amor
E veio cochichar no meu ouvido, Com sua voz macia, aveludada, Uma história estranha, mal contada, Que eu, honestamente inda duvido,
Que tenha, de verdade, acontecido: “Era uma vez um pobre sonhador Que encontrou, em sonho, um grande amor, Que veio cochichar no seu ouvido
Uma história estranha e mal contada, Na qual uma Quimera encantada Enamorou-se de um beija-flor.
E o beija-flor, já velho e cansadinho, Perdeu um dos seus olhos num espinho, E o outro ficou cego… de amor.
EU METAFÍSICO
1- A Morte
A Morte — essa rainha da justiça, Que não distingue o bem do próprio mal, Que trata todo mundo por igual: A carne, o osso, a pele… e a carniça.
E que mantém a alma submissa À vontade do Céu ou do Inferno, Na disputa entre o Demo e o Pai Eterno Pra dizer o amém no fim da missa.
A Morte — esse soneto inacabado, Que rima, lado a lado, o condenado, Seja um verso de Deus ou Satanás.
É capaz de enxergar a poesia Que a vontade de ambos desafia, Seja um que vá à frente — ou pouco atrás.
2- Reencarnação
Quando a morte vier, venha sozinha! Sem anjos ou demônios ao seu lado! Se tiver que sofrer, sofro calado, Pra que a dor enfim seja só minha.
Não vou medir o pranto derramado. Não vou levar sequer uma lembrança. Vou empenhar minh’alma, de fiança, Até pagar o último pecado.
Vou apagar os rastros do caminho, Pra que eu possa assim morrer sozinho, Como a última conta do rosário.
E ao chegar no céu (assim espero), Vou voltar outra vez à estaca zero, E refazer o mesmo itinerário.
3-Morte Matada
O homem é um pária — e é divino! Um anjo mal forjado, imperfeito, Que, por engano, foi por Deus eleito Pra conduzir os fios do destino.
O homem é, em si, o assassino Que à Morte delegou o seu ofício. Mata por puro instinto, ou por vício, Pra ser um anjo torto e genuíno.
O homem mata mais do que a Morte, Pois carrega na alma um passaporte, Com visto para o Céu e o Inferno.
E por ser uma cria divinal, Carrega o pecado original: A pena capital do Pai Eterno.
4- Por que será?
Há seis anos meu Pai se foi embora, Levando a hombridade na bagagem. E pro adeus, da última viagem, Meu coração ainda hoje chora.
Por que será que Deus não perde a hora, Quando é chegada a hora da partida? Por que será que a morte encontra a vida, E juntas, de mãos dadas, vão-se embora?
Será que Deus escreve as linhas tortas, Como o outono escreve as folhas mortas Que o Poeta escreve em Poesia?
Eu não sei a resposta, honestamente! Mas, com toda a certeza, não consente, Que a morte suba aos céus de mão vazia.
5- Pergunta errada
Quem acredita em Deus, provavelmente, Sabe rezar a sós, seja onde for. Também sabe amar, pois que o amor É, para o Criador, uma semente.
Quem acredita em Deus, às vezes sente A dúvida rondar a sua crença. Mas há uma profunda diferença, Entre o que vai na alma e na mente.
Na mente o pensamento é processado, Ao sabor do futuro e do passado, Por sob a luz acesa no presente.
Quem acredita em Deus, e quem duvida, Ao encontrar a morte, ao fim da vida, Vai ter que estar com Ele frente a frente.
6- Procura
Se sinto com a mente, eu duvido De tudo o que a razão também duvida. E, quanto mais avanço pela vida, A dúvida faz muito mais sentido.
Por que será que Deus não é ouvido Por sua própria cria? Me pergunto. Será que é por falta de assunto? Será algum senão desconhecido?
Procuro urgentemente uma resposta, Que seja verdadeira, e não imposta Pela Bíblia, a Torá, o Alcorão…
Uma resposta clara e convincente, Que esclareça as dúvidas da mente E possa alcançar Deus no coração.
7- O nó de Aristóteles
O nó que a vida deu no ser humano, Ninguém sabe dizer como foi feito. Mas, com certeza, foi o nó perfeito, Que enlaçou o grego ao troiano.
O nó que Deus aperta em nosso peito, Pra acalmar a fera que há em nós, E afrouxar a corda de outros nós, E refazer os noses com defeito.
O nó que ninguém pode desatar, Qualquer que seja a hora e o lugar, A não ser que o Criador dê uma mão.
O nó que às vezes fecha a garganta, Seja de um mundano ou duma santa, Seja de Aristóteles, ou não.
8- Soneto da coisa para as coisas
Há uma coisa linda no jardim, Ao lado duma coisa mais bonita! A coisa que a Deus ninguém credita, Desde que Abel foi morto por Caim.
A coisa do jardim está escrita Na Bíblia, na Torá, no Alcorão… E veio da costela de Adão, E fez a criação, por Deus, bendita.
A coisa, que é coisa d’outro mundo, Que quase agora, há coisa dum segundo, Me fez coisificar a Poesia.
Há qualquer coisa doida dentro em mim, Que a coisa encontrada no jardim A todas outras coisas delicia.
9- Inquisição
— Olha dentro de ti. — O que tu vês? — Eu vejo um coração de alma pura. — Olha mais uma vez… olha… procura Minuciosamente… outra vez.
— Não vês uma só gota de amargura? — Não vês nenhum sinal de pequenez? — Eu já te respondi! Terás surdez? Ou algo no teu cérebro supura?
— É que, ao te olhar, vejo o inferno: Tua alma queimar no fogo eterno, E o mal perfundir teu coração.
— Então olha pra ti, inquisitor! E verás como é fácil alguém supor Que tu tens algum vício de visão.
10- A metafísica do óbvio
Quem ouve o sussurrar da poesia, Ouve calado os gritos da razão… É capaz de enxergar na escuridão, Como se fosse em plena luz do dia.
Quem fala o que não ouve, todavia, Não sabe distinguir o bem do mal, E há de ficar mudo no final, Quando a morte disser que já sabia.
Quem não vê, e não fala, e não escuta, E se impõe aos demais na força bruta, É órfão do que sente e o que não sente.
Assim, a metafísica nos diz: O homem (que é do homem um juiz) É cego, e mudo, e surdo, simplesmente.
Por óbvio que pareça, uma vertente, Há sempre algum desvio na matriz.
EU METAPOÉTICO
1- Paradoxalidade
Eu amo e detesto, ao mesmo tempo, A vida e a morte. Entretanto, Não sei o que fazer do desencanto, Se faço do encanto um passatempo.
Ora acredito muito, ora nem tanto Que Deus consiga ler meu pensamento. Ora fico de pé, ora me sento; Ora sou anjo e mau, ora sou santo.
Eu sou um paradoxo da loucura: Um cego de nascença que procura Chegar ao fim da curva em linha reta.
Quero viver? — Não sei. Quero morrer? — Não sei, sinceramente, responder. Então sou louco? Não, eu sou poeta.
2- A morte poética
O verso, em agonia, sentencia à morte um poeta inocente. A poesia grita, em tom clemente: — Não! Deixem viver por mais um dia!
A morte vai chegando lentamente, como se fosse um trem ao fim da linha. E, mesmo que não sinta que ela vinha, espera ver o trem na sua frente.
O verso já morreu; restou saudade! A poesia fita a eternidade e diz, solenemente: — Não morreu!
O poeta duvida, então se cala. E, um pouco mais tarde, solta a fala e pergunta pra Morte: — Quem sou eu?
3- Uma conversa com Deus
E Deus me disse um dia: — Pega a pena, escreve o que vier na tua mente. Escuta o coração e, novamente, escreve o que ele te ordena.
— O coração, Poeta, nunca mente, seja por sobre a ponte de safena ou quando, com a mente, contracena. Portanto, escutá-lo vale a pena.
Então, eu disse a Deus em oração: — E se, por um acaso, o coração não quiser responder, o que eu faço?
— Empunha a tua pena outra vez! Há mais filosofia na mudez do que oxigênio no espaço.
4- Coisas de Poeta
Tô velho! Já vivi setenta anos! Não tô mais na idade de sofrer! Além do mais, eu fiz por merecer os versos de alguns parnasianos:
Bilac, por exemplo — podem crer! — assim como Alberto de Oliveira… Desculpem, mas é tudo brincadeira de quem espera um novo amanhecer.
Se, com setenta anos, sou senil, não há poetas novos no Brasil, pois os poetas morrem muito cedo.
Isto também, meu jovem, é mentira. Um poeta não morre, pois a lira mantém a sua idade em segredo.
5- Inventividade
Há um buraco dentro do buraco que eu cavei no chão do meu quintal. E, dentro do buraco, bem ou mal, me sinto ora forte, ora fraco.
No fundo do buraco, afinal — pois que todo buraco tem um fundo —, encontrei o buraco doutro mundo, que vai até o espaço sideral.
E foi desse buraco surreal que fui do meu quintal pra Portugal em um piscar de olhos, tão somente,
e conheci Fernando, em Pessoa. Desde então, meu cérebro avoa e leva junto a alma e a mente.
6- Herança Lusitana
Trago na veia o sangue lusitano e, na lembrança, os versos de Camões, à sombra das sombrias ilusões que dormem nos porões do ser humano.
A língua portuguesa dá lições pra qualquer outra língua, morta ou viva, pois traz sabedoria na saliva, capaz de inundar aluviões.
Trago na alma a paz da poesia, pra que, na morte, eu tenha a companhia dos versos de Camões e de Pessoa.
Seja um verso à espera duma rima, não importa — contanto que exprima as asas do soneto, quando voa…
7- Poema Esquizofrênico
Camões, quando cheirou a Flor do Lácio, não tinha conhecido a bela Inês. Eu juro, de pés juntos, pra vocês, pela minha reserva de potássio.
Camões, um lusitano português, não foi contemporâneo de Horácio. Este jamais cheirou a Flor do Lácio — sou capaz de jurar mais uma vez.
Eu cheiro a Flor do Lácio, de costume, e levo na memória o seu perfume, para não esquecer dos meus rincões.
E, se um bardo diz: “Inês é morta”, e um soneto bate em minha porta, eu digo: ainda há tempo, Vaz Camões.
8- Parto Prematuro
Agora, exatamente aqui, neste momento, que veio a mim, à luz da minha poesia, um verso de amor, onde a paixão ardia, mas viajou em paz, com as asas do vento…
Agora, exatamente aqui, meu pensamento fez da paixão um grande amor e, finalmente, se aninhou em mim, num vão da minha mente. Este poeta, enfim, pariu o seu rebento.
Poeta que eu sou, um poço d’água turva, consigo ver o sol muito além da curva que liberta o instinto dos nós da razão…
Deixei o pensamento ir-se, pois é hora — exatamente aqui, neste momento, agora —, pra que a poesia não morresse em vão.
9- O olho cego de Camões
Camões perdeu um olho a espiar, pelo buraco de uma fechadura, uma musa inda verde, outra madura, num momento funesto de azar.
Uma musa era linda — uma pintura! A outra, uma pintura desbotada! Camões lembrou Inês, não disse nada… mas carpiu um soneto àquela altura.
Camões perdeu um olho, todavia jamais deixou de ver a poesia, tampouco os belos olhos de Inês.
Dizem que o olho cego de Camões enxergava à distância os corações que falavam latim e português.
9- Quem sou eu, quem é você?
Eu sou só um poeta, simplesmente, que busca a poesia do Parnaso. Sou um desses poetas, por acaso, que não sabe esconder a dor que sente.
Eu sou poeta, sim! Também sou gente. Poeta do futuro e do passado, capaz de ter um verbo conjugado no modo indicativo, no presente.
Você, quem é você? Me diga agora. Responda urgentemente, sem demora… Não omita uma vírgula sequer.
Então você responde: sou poeta! Uma resposta curta, mas completa, pois o poeta diz só o que quer.
10- A morte poética
O verso, em agonia, sentencia à morte um poeta inocente. A poesia grita, em tom clemente: — Não! Deixem viver por mais um dia!
A morte vai chegando lentamente, como se fosse um trem ao fim da linha. E, mesmo que não sinta que ela vinha, espera ver o trem na sua frente.
O verso já morreu; restou saudade! A poesia fita a eternidade e diz, solenemente: — Não morreu!
O poeta duvida, então se cala. E, um pouco mais tarde, solta a fala e pergunta pra morte: — Quem sou eu?
1- Uma sátira lírica
A poesia, dama talentosa, desenha uma rosa sem espinho, pra enganar as ervas do vizinho com o fulgor que empresta à sua rosa.
A poesia segue o seu caminho, independentemente do destino, com seu humor, satírico e ferino, capaz de tocar fogo no parquinho.
A poesia, rainha sem trono, faz do bobo da corte um cão sem dono, perdido nos canis de Pavlov.
Do binômio estímulo-resposta, a poesia descortina a bosta e busca encontrar alguém que prove.
2- A sátira do destino
O ébrio, a fazer curva em linha reta, não conseguiu chegar ao seu destino. Guiavam-lhe um cego, um canino, um padre, um rabino e um poeta.
O canino, a farejar sua desgraça. O padre, a fazer frente ao rabino. O cego, que ficou cego inda menino, a encher o poeta de cachaça.
E vão seguindo enquanto a vida passa… E vão passando enquanto existe graça em fazer curva sobre a linha reta.
Como o destino é dúvida divina, o cego sai de cena, na surdina, e deixa Deus por conta do poeta.
3- Desígnio de Pai
Foi um pai exemplar, um bom marido, ciente dos deveres conjugais. Criou a prole inteira e, muito mais, ofereceu o colo e o ouvido.
Viveu só pra fazer e dar sentido ao desígnio de pai, como entendia: ser pai é dar o pão de cada dia e garantir que seja dividido.
Ser pai é castigar (quando preciso), desde o dente de leite até o siso, e dar o amor mais puro e verdadeiro.
Ser pai é limpar fezes e urina, quer seja do menino ou da menina, sem preconceito ou distinção de cheiro.
4- Uma sátira Freudiana
Um ser inteligente é um pensante, capaz de dominar o próprio instinto. Assim eu interpreto, penso e sinto, como fosse um discípulo de Dante.
Que me perdoem Dante, o vinho tinto, o copo de cerveja pelo meio… Pois a inteligência pôs um freio, e eu não sei mentir, mas sei que minto.
Hoje acordei com Freud na cabeça, e, antes que o dia anoiteça, vou sentar com Jung, lado a lado…
Tomar uma garrafa de cachaça, bebericar, enquanto a vida passa, e deixar meu QI embriagado.
4- Uma sátira irônica
Não desperdice nunca a ironia nas batalhas inglórias da burrice, como Quintana um dia já nos disse, pois a burrice é quase epidemia.
O burro vive à sombra da mesmice, não consegue entender a ironia, ainda que ele tenha a regalia de ter a sucursal da idiotice.
Tivesse a inteligência de Quintana, e nunca gastaria a pestana pra contestar um burro. Todavia,
como sou um poeta insistente, vou deixar a burrice de presente pra quem não entender a poesia.
5- A caminho do bar
Num dia muito feio e carrancudo, eu acordei de muito mau humor, botei roupa de frio no calor e reclamei de tudo, ou quase tudo.
Tomei cerveja choca de canudo, chamei água de cheiro de fedor, e acusei Nabucodonosor por não ter terminado meu estudo.
E, para completar, obrei na grama da casa da vizinha — a velha dama que vive na janela a fofocar.
O dia, ainda feio, deu risada, como quem ouve ou conta uma piada, até meu mau humor entrar no bar.
6- Salvador dali e de acolá
Dali, o Salvador, morreu na cruz, trocado, que ele foi, por Barrabás, quando Pôncio Pilatos deu pra trás e lavou-se no sangue de Jesus.
Pilatos combinou com Satanás divulgar que Jesus era farsante. E, de lá para cá, em um instante, fez o pó do enxofre virar gás.
Essa estória, cristãos, não foi escrita; ouvi na minha última visita ao mundo “fake news” de fim do ano.
Pilatos encontrou Satã, de novo, no dia que a serpente pôs o ovo que eclodiu em solo americano.
7- O cachorro de Miró
Miró tinha um cachorro pequinês, que latia pra lua noite e dia. Quanto mais bela a lua, mais latia — eu revelo, em segredo, pra vocês.
Miró provavelmente não sabia o porquê dos latidos do cãozinho. Então foi perguntar pro seu vizinho, um modesto pintor de Andaluzia.
O pintor disse a ele: “Seu Miró, a resposta, eu lhe digo, é uma só: seu cachorro é um bicho surreal!
Se duvidar, pergunte ao Seu Picasso: um tapinha nas costas, um abraço, um latido pra lua… e coisa e tal.”
8- Lamas de março
As chuvas de verão tão indo embora, deixando um rastro enorme pelo chão: acordes de Jobim, promessa em vão, que diz que a natureza também chora.
Um pedaço de pau, feito pião, a rodar pela tampa dum bueiro; uma lata de lixo, um mau cheiro, um corisco seguido de trovão.
São as lamas de março do outono a sujar, como fosse cão sem dono, uma pedra no meio do caminho.
A pedra que Drummond deu pra Jobim, e que um certo alguém jogou em mim, pensando que eu fosse um passarinho.
8- Humor ambíguo
Hoje encontrei a lira de Bocage escondida no falso moralismo, que constrói a montanha no abismo e que une a desfeita ao ultraje.
Ser poeta é um ato de heroísmo, na guerrilha campal da poesia, onde a rima explode à luz do dia e a ostra fecunda o ostracismo.
Bocage se livrou do Manuel, trocou a velha pena por pincel, e hoje pinta o sete por aí…
E eu, ao me apossar da sua lira, tropeço, é bem verdade, de mentira, nas dobras do bigode de Dalí.
9- A quarta lei de Newton
Quando a idiotice apodera o cérebro humano, afinal… não há massa cinzenta cerebral capaz de cultivar a primavera.
A marcha intestinal se acelera… os gases se transmutam em trovões… e nem sequer um verso de Camões descreve Inês de Castro como era.
O sonho se transforma em pesadelo, de sorte que nem Freud pode vê-lo da colcha aconchegante do divã.
E, como a toda ação há reação, a quarta lei de Newton diz, então, que hoje vai ser ontem, amanhã.
10- O capital de Marx
Construía muralhas e castelos, que jamais ousaria entrar um dia. E, quanto mais castelos construía, mais cimento grudava nos chinelos.
Inda hoje nos dizem que são belos os castelos erguidos, todavia nenhum deles serviu de moradia, ou tirou o cimento dos chinelos.
E assim vai tecendo o capital, como se fosse um Marx sem o Karl, ou um tal Mikhail sem Bakunin.
E a pobre lagarta operária, que do bicho-da-seda é sectária, vai se encher de cimento até o fim.
1- Orgulho Nordestino
Trazido, pelos braços do destino, à terra que o seio me ofertou, eu, felizmente, hoje sei quem sou e o que já fui, nos tempos de menino.
Vivi a vadiar, no sol a pino, de pés no chão, calção pela cintura, como se fosse parte da pintura que Deus pintou no solo nordestino.
Ah, como é bom amar a própria história! Guardar, de cor, no fundo da memória, toda a felicidade concebida.
Lavar o corpo, a alma, a razão… nas águas da lembrança do meu chão, que hei de defender por toda a vida.
2- Ego nordestino
Sou nordestino, sim! De nascimento. Vivi minha infância em Teresina, de onde escrevi a minha sina, no livro que guardei no pensamento.
Plantei uma saudade em cada esquina e despachei, nas asas do futuro, meu sonho adolescente, imaturo… junto às imagens presas na retina.
Ao chegar ao futuro, já cansado, pus a dor e a saudade lado a lado e voltei ao meu tempo de menino.
Bati asas no céu da poesia e voei, sem descanso, noite e dia, nas entranhas do ego nordestino.
3- Soneto matuto
Vossemecê num sabe, Sinhozinho, pois abra bem as oiças pro que digo: primeiramente, atente o seu embigo antes de expiar o do vizinho.
Segundamente, nunca vá sozinho pra onde aponta a venta, mode quê alguém pode seguir vossemecê e espetar os pés pelo caminho.
Eu bem sei, Sinhozinho, eu bem sei: a natureza invoca alguma lei toda vez que o vento traz a chuva.
Vossemecê num sabe, Sinhozinho, mas, quando o bem-te-vi morre no ninho, a cobra toma conta da viúva.
4- Meu oxente de Ano Novo!
E o Ano Velho foi-se, finalmente… Levando, na corcunda, a pandemia, enquanto o Ano Novo assobia um silvo de tristeza em tom dolente.
Meu coração matuto diz: oxente! A minha poesia: arre égua! Um soneto pudico sai da régua, pra não metrificar a dor que sente.
É ano novo, oxente, novamente! E há de ser um ano diferente, pois vai haver nevasca no sertão.
O Zé vai passear de jegue-esqui, a flor vai esnobar o colibri, e os ratos vão de volta pro porão.
5- Arre égua!
Um deus, um semideus e tantos mais… Onde será que vai a humanidade? Peço ao bom Deus que tenha piedade de mim e doutros seres animais.
Será que só sou eu, entre os demais, um simplório mortal no vasto mundo? Onde foi que Drummond jogou Raimundo, que nem sei se existe ou rima mais?
Arre égua, não há uma resposta! É que o mundo hodierno é um bosta, e a bosta do mundo é essa gente
que se diz a elite dos pensantes, mas que pensa e que age como antes do macaco ficar inteligente.
6- De volta a Teresina
As águas do passado, hoje turvas, motrizes dos moinhos de criança, trouxeram, dos confins, uma lembrança que conseguiu varar ventos e chuvas.
O rio serpenteia em sua andança, enquanto a lembrança faz as curvas e deixa para trás paixões viúvas de um sonho que nasceu da esperança.
Hoje, ao pisar o chão do meu passado, meu coração, qual um cupido alado, vagou pelos jardins da minha infância.
A terra, ainda quente como outrora, insiste em me lembrar que fui embora: na brisa, no luar e na fragrância.
7- Meninice em Teresina
Um soldado de chumbo, um pião… Um cavalo de pau, um rolimã… Um puxão nos cabelos da irmã. Um puxão nas orelhas do irmão.
Um olhar preguiçoso da manhã. Uma nuvem de chuva de verão. Um pernoite, em claro, de serão. Uma semente seca de romã.
Assim era o meu mundo de criança, junto aos demais guris da vizinhança do velho e nobre pé de tamarino,
que projetava a sombra na calçada, onde minha primeira namorada sentiu que eu já não era mais menino.
8- Lirismo do Piauí
Cresci olhando a lua, essa menina, que ilumina o céu do meu sertão. Nu, da cintura acima, pés no chão, sob o calor do sol de Teresina.
Meu pai me trouxe a verve Alencarina, e minha mãe o dom de Portugal. Cresci secando sonhos no varal à luz duma fulgente lamparina.
Nasci no Piauí, terra querida, de onde dei o salto para a vida, que ora trouxe a mim a poesia.
Hoje, que sou poeta, não sei onde meu velho coração perdeu o bonde que o trilho do lirismo o levaria.
9-Ao luar do sertão
A lua, essa dama peregrina, que ostenta, no sertão, tanta beleza, hoje veio sentar-se à minha mesa por uma fenda aberta na cortina.
Enquanto a luz da vela ilumina e o tempo queima as horas no pavio, desde o meu coração (quintal baldio) o sangue inunda os vasos da retina.
Lá fora, junto ao pranto da neblina, a noite, qual insone bailarina, ensaia uma sonata ao luar.
Cá dentro, eu me calo, embevecido, e a lua, a sussurrar no meu ouvido, instiga o coração pra namorar.
10- História de um amor
Virgulino Ferreira, o Lampião, como a voz da história lhe credita, foi amante da moça mais bonita que um dia vagou pelo sertão.
Uma flor, por detrás de um gibão, que servia ao peão de montaria, quando, à noite, buscava por Maria, pra calar o fuzil no coração.
Foi-se a flor, fez-se o tempo, veio a morte. Veio a bala, a peixeira, veio o corte das cabeças ceifadas a facão.
A história de amor, então completa, vaga o mundo em busca de um poeta que reviva o amor de Lampião.
1- Dadaísmo tupiniquim
A elite que pensa, mas não faz, faz quase sempre tudo o que não pensa. Publica seus dejetos na imprensa, pra quando, na privada, ler em paz.
A elite imagina ser capaz de perfumar o mundo com seu cheiro, e de limpar o ânus com dinheiro, e de poder mentir que pensa e faz.
A plebe que não faz o que não pensa, que acha que o crime não compensa, e que não tem dinheiro nem privada…
Não publica — nem mesmo num pasquim. E, quando o mundo, enfim, chegar ao fim, vai ter o ânus sujo e mais nada.
Você, seu grandessíssimo sacana, filho de uma puta educada: a dama que virava a madrugada, no fim e no começo da semana.
Você, seu bibelô de porcelana, feito de barro, e cal, e porcaria… que diz que encontrou sabedoria numa singela casca de banana.
Você, seu idiota inteligente, precisa defecar, urgentemente, as fezes que lhe fedem na razão.
E nem pense em querer me processar, pois eu estou cagando pro azar, em prol da liberdade de expressão.
3- Merda de Rei
Quando o rei andou nu pela cidade, a cidade inteirinha ficou nua. E, quando o rei cagou em plena rua, todos louvaram Sua Majestade.
O rei não se sentiu muito à vontade, mas cagada de rei não volta atrás. E a cidade inteira, por detrás, cagava de mentira — é bem verdade!
A ânsia de poder, meu camarada, é tanta, que só basta uma cagada para unificar opiniões…
Por exemplo: o rei dessa estória pôs a bosta na lista sucessória, e o povo entrou na fila dos cagões.
4- Lero-lero
O meu psiquiatra, no divã, me disse que eu era bipolar. Mas, como não dou bola pro azar, vou procurar um outro amanhã.
Pensei em Freud, Jung… em ir pro bar… Pensei em escrever uma bobagem… Pensei em fazer cara de paisagem… E resolvi, enfim, contrariar
o meu psiquiatra duma vez: abri um puro malte escocês, peguei minha mulher pela cintura
e dancei uma valsa e um bolero. Não quero mais ouvir o lero-lero, e rezo pro meu caso não ter cura.
5- Advogado do Diabo
Logo no seu primeiro casamento, Adão caiu no conto da serpente. Eva catou maçã, meteu o dente… E Deus largou a prole ao relento.
Adão, que era muito ciumento, entupiu a serpente de maçã, e foi pedir conselho a Satã, pra então desfazer o juramento.
Eva viveu feliz desde então, mesmo apesar da tal menstruação: um castigo do Pai Celestial (?).
Adão, após deixar o purgatório, abriu, com Satanás, um escritório de advocacia pra casal.
6- Santo do Pau Oco
Um santo homem, dizem por aí. Mas não o conheciam muito bem! Agora já não vale um vintém, ou mesmo um caroço de pequi.
Fundou uma igreja em Pitangui e uma offshore em Gibraltar; o perdão, para quem quiser pagar, reservando o milagre só pra si.
Comprou um bom lugar no paraíso, para lavar dinheiro e, se preciso, sonegar o imposto do pecado.
Um santo homem, ainda há quem diga. Mas, na verdade, é mais uma lombriga num tolete de bosta defecado.
7- Democrata Moderno
Eu sou um democrata bem moderno. Aceito discutir qualquer assunto. Como feijão-de-corda com presunto, quer seja aqui no céu ou no inferno.
Visto mangas cavadas sob o terno, calço sandália ou cromo alemão. Bebo cachaça pura ou com limão, seja com diretor ou subalterno.
Sei que a democracia, a esta altura, faz parte da antiga ditadura que Deus sentenciou ao paraíso.
Eva deu seu voto pra serpente, e, como Adão não tinha um só parente, ainda hoje amarga o prejuízo.
8- Esnobe
Vai um café pingado, bem quentinho, Sem borra, sem açúcar ou adoçante, Naquela porcelana elegante, Que eu furtei da casa do vizinho?
Um dedo de licor e de carinho, Um verso de Pessoa, outro de Dante, Um beijo da mulher, ou da amante, Um céu de tom celeste azul-marinho?
Café frio, Poeta, não tem graça! Ainda que servido numa taça Com toda a etiqueta da elite.
Mas não tente servi-lo requentado, Pois o café precisa ser cuidado, De sorte que nem Deus desacredite.
8- Prefácio Fake
Camões prefaciou um livro meu, Escrito em português, à moda antiga, Quando Inês, ainda rapariga, Se entregou a Pedro, o seu Romeu.
E foi também Camões que descreveu Pra mim a triste história de Inês, Que no meu livro eu conto pra vocês, Por já estar na fila pro museu.
O livro, na verdade, não existe. Mas peço, por favor, não fique triste, Pois a história sempre se renova.
Como: “Quem conta um conto aumenta um ponto”, Meu livro nunca mais vai ficar pronto, Porque a bela Inês levou pra cova.
9- Fome Canina
Segue a Lua crescente, quase cheia, Com o seu colar brilhante, reluzente, A desfilar no céu, suavemente, Agora, exatamente às dez e meia.
Numa poça de lama em minha frente, Um cãozinho de rua molha a pata. Pelo jeito, parece um vira-lata A procurar, em vão, cachorro-quente.
Já quase meia-noite, bate o sono! Na rua, só, vagueia o cão sem dono, Como se fosse o dono dessa rua,
A farejar em busca de comida. E, por não achar nada, toca a vida… Põe a língua na lama e lambe a lua!
10- Ovo de Colombo
Um sujeito entrou na Escolinha Do professor Raimundo, por engano, Na despedida de final de ano, Sem dizer a que veio e donde vinha.
Ostentando um sotaque lusitano, Se disse descendente de Cabral; Que era deputado federal, Um neoliberal e republicano.
Cacarejou igual uma galinha, Deu um passeio na sala vizinha, E voltou com um ovo ainda quente.
Cacarejou então mais uma vez, E disse, em galináceo português: “O ovo é de Colombo, minha gente!”
1- Cruz Tupiniquim
Judas fez uma cruz de pau-brasil, Amarrada com tiras de imbira, Mas seu fino pescoço ainda gira Na farsa de primeiro de abril.
Ainda assim sustentam a mentira De que traiu Jesus de Nazaré, O filho de Maria e de José, Que o mundo até hoje admira.
Judas, de sobrenome Iscariotes, Pensava, semelhante aos Zelotes, Em derramar o sangue na batalha,
Pra libertar o povo da Judeia. Jesus não comungava tal ideia, Pois Judas era só fogo de palha.
A pulga deu um pulo e, por azar, Foi parar no bigode de Dalí, Que só acentuou a letra i, Depois que Santo Antão tentou tentar.
Dalí, dali pra frente, foi pro mar, Com seu velho cãozinho andaluz, A repintar um quadro que compus, Quando a pulga mudou-se de lugar.
Hoje ela pula e vive alegremente… E até já pariu o descendente, Que achou a menina na janela.
E eu, que não pintei autorretrato, Cultivo um bigode abstrato, Pra que Dalí não chegue perto dela.
3- Pavão Atômico
A cauda desenhada em branco e preto, O bico de grafite apontado, Uma asa a bater de um só lado, Os pés, uma emenda no soneto.
Um olho, um farol avariado; O outro, uma lâmpada queimada. O voo, claudicando para o nada; O canto, um eco triste do passado.
Eis, pois, o meu pavão surrealista: Um aborto de arte, deste artista, Pintado pelas mãos da poesia.
Espero que ele voe pro Parnaso, E chegue, com mil anos de atraso, Bem onde “Abaporu” fez moradia.
4- Metáfora surreal da criação
E Deus, assim do nada, fez o mundo. Depois pegou no sono por um dia. Então fechou-lhe a porta à sua cria, E tornou o seu sono mais profundo.
E logo, ao despertar, Deus avalia Estar faltando algo essencial. Então gestou o verso principal, E Eva deu à luz a poesia.
E Deus viveu feliz, desde então, Com Eva-poesia e Adão… Longe das forças tétricas do mal.
Até que um beato sem talento Expropriou de Deus o seu invento, E criou o pecado original.
5- Carnaval Surreal
Um peito da passista é de madeira, O outro, um mamão amarelado. A bunda tem um jeito em cada lado, Como se tudo fosse brincadeira.
A boca, com formato de pecado, Parece engolir o mundo inteiro. Somente o nariz é verdadeiro, Mesmo que não pareça ter cheirado.
O samba atravessou na avenida, Pois o surdo não deu sinal de vida, E a cuíca engasgou o tamborim.
Dalí, o Salvador, entrou em cena: Pintou uma florzinha, bem pequena, Nas partes genitais do Arlequim.
6- A face da guerra
A guerra mata menos que a fome, Mas mata muito mais do que a peste. Entretanto, na guerra se investe Todo o material que ela consome.
Na guerra, o capital muda de nome, E passa a ser chamado de ajuda. Mas, por qualquer motivo, logo muda, E, do jeito que veio, também some.
A guerra é um grande investimento, Pois rende muito mais de mil por cento, Livre de sobretaxa e de imposto.
As mortes fazem parte do processo. E, mesmo que elas sejam em excesso, Para cada rei morto há um rei posto.
O Arlequim vê tudo ao avesso: Os seios são os pés da Colombina, A boca toma a forma da vagina, E o fim vem muito antes do começo.
A lua se dissolve na neblina, Enquanto o sol refresca o ambiente. A chuva faz o fogo ficar quente, E o mestre aprende mais do que ensina.
O mundo surreal impressiona, Porquanto até a Lisa ri da Mona, Pendurada no Louvre, em Paris.
Eu sou o Arlequim dessa pintura: Um poeta em transe de loucura, Que sabe muita merda, mas não diz.
8- A boca da noite
A noite abriu a boca e engoliu O sol que preguiçava no poente, Uma banda da lua já crescente, No silêncio que teima em dar psiu.
É que a boca da noite não tem dente, E engole de vez, sem mastigar, Como faz a baleia à luz do mar, E a dor do amor dentro da gente.
A noite abriu a boca e cuspiu O sol, que não ouviu um só psiu, No silêncio da lua, ora minguante.
É que a boca da noite não tem língua, E, portanto, enquanto a lua míngua, Cala o brilho do sol em um instante.
9- Realidade Paralela
Debaixo do meu Ego mora um cego, Que anda no espaço sideral, De óculos escuros e coisa e tal… E representa tudo o que renego.
Um cego com visão espectral, De ouvido aguçado como um cão, Capaz de enxergar na escuridão O bem a cavalgar por sobre o mal.
Debaixo do meu Ego mora um mudo, Que fala sobre nada e sobre tudo, Qualquer que seja o tema ou o assunto.
Um mudo que arremeda a voz do cego, Que fala, e vê, e ouve o que renego, E que há de dublar o meu defunto.
10- Desenho surreal
Desenhei um coqueiro na parede, Sem o coco e sem palma, simplesmente Um coqueiro que nasceu na minha mente, Bem quando a poesia tinha sede.
Mas não tinha parede, tão somente Uma janela aberta, outra fechada, Uma pá, um enxó, uma enxada… E um carvão, em brasa, ainda ardente.
Desenhei o coqueiro com grafite. E hoje eu lhe peço: acredite Que agora dá coco e abundância.
Pois ele é um coqueiro surreal, Que verte água de coco no quintal, Pra nutrir fantasias de infância.
próximos capítulos:
EU PROFANO EU FILÓSOFO
Herculano Alencar
Enviado por Herculano Alencar em 09/07/2025
Alterado em 10/07/2025 Copyright © 2025. Todos os direitos reservados. Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor. Comentários
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